A Festa

No caminho do quarto até a cozinha, já havia passado pela sala quando nota algo fora do lugar. Perto da porta, uma carta. Não parece um boleto de cobrança, o único tipo de correspondência que recebe desde que a mulher o deixou, dois anos atrás. Abre com um cuidado que não costuma dispensar às coisas que manuseia. Lê um convite para o aniversário de trinta anos da turma do curso de jornalismo da faculdade. No segundo em que se dá conta de que não havia lido seu nome no envelope ao abri-lo, vê que o convite  só poderia ser para ele próprio, ainda que se recuse a crer que três décadas já se tenham passado desde sua formatura.

Depois da separação e do desemprego - o motivo que enxerga para a mulher ter lhe trocado por outro -, arranjou um bico de revisor numa pequena gráfica a vinte quadras de casa. Vai e volta em caminhadas nas quais é recorrente pensar sobre até quando existirão pequenas gráficas. Numa dessas caminhadas, decide que irá à festa. Sua preocupação é como se ambientar entre pessoas que não vê há eras. Treina conversas triviais na fila do supermercado e se dá por satisfeito.

É o dia. No endereço do convite, uma casa que nunca viu. O portão destrancado é facilmente superado. O som de copos de vidro, palavras indecifráveis e gargalhadas o fazem sentir que está no lugar certo. Sua recepção são alguns olhares discretos de estranhamento, de quem parece querer reconhecê-lo sem conseguir. Não sabe a quem dirigir-se para dizer que já estava ali. Como não traz nada nas mãos para entregar a ninguém, segue casa adentro sem desespero.

Vê um rosto conhecido - talvez seja Carlos seu nome. Lembra-se de já o ter encontrado alguma vez na vida, mas não acha que já estudaram juntos. O homem vem ao seu encontro com um sorriso simpático no rosto e um copo de cerveja na mão. "Olha o José! Eu não esperava encontrar você aqui. Lembra de mim? O Carlos", diz o homem. "Claro! Eu também não esperava você aqui", responde José. A confirmação de que se conheciam é uma dose de relaxamento, completada com a bebida oferecida por Carlos. José diz que prefere vinho e pergunta se não há algum supermercado por perto, porque só então percebeu que não está num bar para pagar pelo que for beber. Carlos o tranquiliza: todos na festa estão avisados de que a bebida é por conta da anfitriã.

Levado por Carlos para uma roda de conversa, José continua sem reconhecer ninguém no grupo. Nem no outro, também levado por Carlos. Nem no vizinho, aonde se dirige depois de ver uma mulher que acha bonita. Nem no que entra após avistar uma garrafa de vinho cheia, perfeita para seu copo vazio. Nessa festa de estranhos, refugia-se na cozinha. Tem papos de um minuto com um ou outro que aparece rumo à geladeira.

Carlos já não é visto há um bom tempo. José decide então ir embora, mas passar por aquela sala cheia de gente é algo que lhe aterroriza. "Se alguém percebe que estou indo embora, vem despedir-se, não me reconhece, acha que sou um penetra e chama a polícia?", fantasia. Roteirizar situações constrangedoras e deixar José tomar-se pelo medo delas é um exercício sádico de seu inconsciente. A polícia é algo que ele especialmente teme, desde que a mulher o deixou. Permanece na cozinha até que alguma ideia melhor venha à mente. A bebida, pelo menos, está ali a seu alcance.

José começa a abrir uma garrafa de vinho quando a cozinha subitamente fica às escuras. Alguma interjeição que escapa naquele momento surpreende Carlos, que desligou a lâmpada da cozinha sem imaginar que ainda houvesse algum convidado em sua casa. "A festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José?", cantarola Carlos na cadência do poema de Drummond musicado por Paulo Diniz, em sua tentativa de tornar espirituosa aquela estranha situação com seu oculto último convidado. "Acho que já disse isso hoje: eu não esperava encontrar você aqui", continuou, com o mesmo sorriso simpático que recebeu José horas antes. O sorriso dá lugar a gargalhadas que Carlos tenta segurar, enquanto pede desculpas e diz que precisa lhe falar algo extraordinário.

"Você virou o assunto enquanto estava aqui exilado. Todo mundo me perguntando quem era. Minha mulher, a Julieta, que é dessa turma que completou trinta anos, foi quem resolveu o mistério: você não é da turma. Foi um mal entendido, coisa de homônimo. José de Oliveira não é um nome lá muito incomum. Tenho certeza que você mesmo daria ótimas risadas com a gente, mas ninguém imaginava que você ainda estava aqui!"

José ri o que é possível, depois de uma noite com medo dos policiais que rondavam sua imaginação. Ri por ter passado a noite bebendo de graça na casa de gente que mal conhece. E ri de si, o grande estranho da noite, tão bem recebido. José despede-se de Carlos, que vê na mesa a garrafa de vinho que seu convidado não abriu. "José, uma lembrança desta festa, que foi tão sua, pelo tanto que falaram de você. Tome, este Periquita é seu".

A garrafa está reservada por José para um jantar especial, que, em seus sonhos, terá quando sua mulher voltar.

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